quinta-feira

"Quando a cabeça não tem juízo e te consomes mais do que é preciso"


"Quando a cabeça não tem juízo
Quando te esforças
Mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa-o pagar, deixa-o pagar
Se tu estás a gostar

Quando a cabeça não se liberta
Das frustrações, inibições
Toda essa força, que te aperta
O corpo é que sofre
As privações, mutilações

Quando a cabeça está convencida
De que ela é
A oitava maravilha
O corpo é que sofre
O corpo é que sofre
Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer
Se isso te dá prazer

Quando a cabeça está nessa confusão
Estás sem saber que hás-de fazer
E ingeres tudo o que te vem à mão
O corpo é que fica
Fica a cair sem resistir

Quando a cabeça rola para o abismo
Tu não controlas esse nervosismo
A unha é que paga
A unha é que paga
Não paras de roer
Nem que esteja a doer

Quando a cabeça não tem juízo
E te consomes, mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa-o pagar, deixa-o pagar
Se tu estás a gostar
Deixa-o sofrer, deixa-o sofrer
Se isso te dá prazer"

quarta-feira

À caça de borboletas

Vimo-nos obrigados a chegar à conclusão que andamos toda a vida à caça de bonitas borboletas. E que toda a vida não passamos de feias lagartas. Ou pior, o mais longe que chegamos será ao estado de feias lagartas escondidas em casulos.
Por muito amorosas que possam ser algumas lagartinhas, as borboletas são seres graciosos, têm asas. As lagartinhas caminham pelo chão, tentam subir árvore acima até às folhas mais altas, e não passam daí. Não voam.
O que há de tão complicado em resolver o casulo?




quinta-feira

"Qualquer janela serve para voar"





Quando se tem muito tempo livre e pouca imaginação, ou alguma imaginação mas uma determinação ligeiramente tosca, acaba-se inevitavelmente a olhar para a parede como se não houvesse amanhã. E naquela parede passa tudo. Passam os sonhos, passam os dias, passa o tempo. Passa um mar de tudo o que se tem no pensamento, e pensa-se em tudo e mais alguma coisa. A roupa que se vai vestir amanhã, o local onde ficará a casa ideal, a pilha de loiça no balcão da cozinha, a frase feia e má dita no dia anterior a uma pessoa querida, tudo o que ainda falta fazer até se poder parar no sofá e não mais dali sair até se querer, sem se ser obrigado (reforma?! que provavelmente não será assim tão bom, não fazer nada). O filme da vida, a nossa e a dos outros, os dramas, as tragédias, as situações impossíveis de se resolver (que acabam sempre resolvidas), as festas, o brilho das datas especiais, as pessoas especiais, os enlaces e os laços. A razão de se existir. E o propósito de se ser.
O acto puro de pensar. Como quem não tem mais nada que fazer além de ficar especado a pensar para a parede. Tudo o que acaba por se pensar. Uma prisão grande o suficiente para que se oiça o eco do que se pensa. Um misto de cruz e de dom, um afinal "sumo agridoce".
Em vez de uma parede, porque não uma janela? Pelo menos pode sempre contar-se com ela... para voar! Aliviar a angústia de ter apenas uma parede para olhar. Esticar os olhos, espreguiçar as pálpebras e alargar as vistas. Que o que mais se vê, não está à frente dos nossos olhos. Está atrás deles. E quando assim se olha, é preciso muito mais espaço. Esquece-se então a parede, abre-se a janela e afasta-se a cortina e os cortinados. Que tem muito mais por onde reparar. Ainda que seja de noite, ou que se esteja nas traseiras de um prédio cuja vista se resume a tijolos vermelhos ou cimento por pintar. Porque aparece sempre um pássaro ou um insecto voador para fazer comichão na fotografia e emprestar as asas.
Qualquer que seja a janela, serve sempre para voar.

domingo

Qualquer pretexto serve para escrever


Que seja um pretexto mesmo fraquinho! Para que as expectativas para o resultado também não sejam elas muito cheias de força. E para que uma folha sirva apenas e só a sua função, que é a de consolar alguém só (será? a função assim ou o alguém só?). Que a razão aparente que se alega para encobrir o verdadeiro motivo por que se fez ou deixou de fazer alguma coisa não seja aqui importante. E que não se dê importância nem ao motivo verdadeiro, nem ao falso motivo. Para que apenas se olhe. E para que os olhos executem apenas e só o seu exercício, que o de ver os ultrapassa. Não se queira, portanto, ver o que não é suposto ser para ser visto. Não se sinta aquilo que não nos pertence. Dê-se somente a liberdade a quem a solicita de mansinho, como quem não quer ou não sabe que anseia pela coisa, ou não sabe pelo que anseia, simplesmente.
Porque qualquer pretexto serve para escrever. E porque lá por se encontrar escrito não quer dizer que tenha de se ler.