sexta-feira

Fim de tarde, início de outro caminho


Era ao fim da tarde que ela gostava de se sentar no baloiço pendurado no salgueiro-chorão ao fundo do terreno da casa da avó. Protegida pela sebe densa que a separava da vista dos primos e outros que por lá andassem, Amélia saboreava a baixa luz de sábado. Mais balanço, menos balanço... Fechava os olhos, ouvia os grilos, as cigarras, o zumbido de mosquitinhos e o barulho das asas das libelinhas que pousavam nas margens molhadas do charco. Uma ou outra vez, o coachar tímido de algum batráquio que a observava, intrigado. Abria os olhos, pirilampos a piscar descreviam voltas em volta dos juncos e escondiam-se atrás das flores fechadas, preparadas para uma noite de sono. Imaginava no ar a tracejado as espirais das trajectórias dos insectos que lhe faziam companhia. Inspirava o calor que a abraçava. Aquele Verão seria um dos melhores. Amélia, amiga do sossego. Precisava sempre daqueles momentos de calmaria, recuperar das brincadeiras que nunca querem acabar. "Só mais um bocadinho, avó, ainda não está escuro", "Vá lá, meninos, ainda têm de tomar banho antes do jantar". Fim de tarde, final do Verão. Início de um outro caminho. Amélia meditava, pensamento em torno do que em pouco tempo a esperava. "Nunca fui dada a aventuras". Não precisava de o dizer em voz alta, já estava assustada que bastasse. Amélia, amiga do conforto de se conhecer finalmente a si própria. Prestes a deparar-se com a angústia de se desconhecer outra vez. Para a frente, para trás... "Chega de lamúrias! Arregaça as mangas, Amélia". Então Amélia saltava do seu baloiço, e corria para dentro de casa. "Amélia, despacha-te! Já estão todos prontos para se sentarem à mesa, os teus pais não tarda estão a chegar". Adeus, baloiço, até um dia. Doce sensação de aconchego que se dá por terminada. "Arregaça as mangas!"
Hoje, tão longe aquela tábua de madeira suspensa daquela árvore por cordas enfraquecidas pelo tempo. Ao mesmo tempo tão perto, Amélia ouve ainda ao longe as gargalhadas dos outros miúdos, os ralhetes fingidamente zangados da avó. O cheiro a verde, a Lua que cai. Sossego que nunca volta, é para sempre um sentimento de saudade de nos sentarmos no agasalho que é sabermos que começamos num sítio e acabamos noutro, somos a nossa cabeça, tronco e membros, e essa cabeça não tem tantos recantos sombrios assim. Hoje, todos os dias são início do caminho e essa cabeça parece cada vez mais contorcida em labirintos cheios de nem se sabe o quê. E que o caminho continue.

1 comentário:

Mafalda disse...

Delicioso.

Fez-me lembrar aqueles livros que lia na infância. Muito ao género de Sophia de Mello Breyner.

Na altura nunca imaginei q essa menina também pudesse ser eu :)

Delicioso mesmo :)