sábado

Mala de viagem

Se eu fosse como o vento, não passava por nenhum lugar igual ao anterior. Daria voltas e voltas, em que o mundo esticaria sempre mais além de onde acabava e eu nunca lhe veria o fim. Não reconheceria o rosto de ninguém em quem tocasse. Não passaria de um vaguear perdido, alheado. Sem origem, sem destino. Sem caminho, nem mapa. Não sei onde passo nem o que vejo. Tudo é sempre novo para mim. Levaria uma capa e capuz, para poder proteger-me da intempérie e do sol, umas botas, para pisar as pedras e as ervas e as poças do chão, e uma mala cheia de nada, para poder encher com tudo. Precisaria de muito espaço, para apanhar o que o acaso me trouxesse à mão. Guardaria tudo com carinho. Não deixaria nada para trás. Sem origem, sem destino, sem caminho sequer, tudo o que encontrasse seria o que me tornaria a mim e à minha existência importante, faria valer a pena. É tão belo assim viver o mundo. Não há amarras que me prendam quando estico o corpo e subo no ar, e, sempre que viro uma esquina ou alcanço uma cerca, encontro novidade e mistério. Espero nunca perder a mala. Gosto de a abrir de vez em quando. Forçar a mente, ainda que sem grande sucesso, a revisitar cada lugar. Gosto de sorrir e dar as mãos às memórias que ela encerra. As essências perdidas no tempo que já passou, que não volta. Essas, quero-as para sempre.

Maleável ou nem tanto

Dentro da flexibilidade, há alturas em que se sente uma rigidez que parece ser só nossa, estranha, de outro mundo... No fundo, aos olhos dos outros parece-nos a nós que somos mesmo extraterrestres a desejar algo completamente fora do alcance humano, totalmente descabido, desprovido de razão de ser, por ser tão inatingível, tão utópico. Acabo a sentir-me mal de cada vez que me contenho e não digo a alguém conhecido que devia deitar a beata no cinzeiro ou no lixo em vez de, descontraidamente, a pisar no chão ou enterrar na areia da praia. Visito alguém e deito embalagens de plástico, objectos em cartão ou garrafas de vidro no lixo comum por não se separar os resíduos naquela casa. Desço de elevador para agradar a quem sai de casa comigo e apanho o metro em vez de andar a pé e chegar mais depressa à faculdade. Guardo no quarto escondidas as bolachinhas para molhar no leite à noite antes de ir dormir, para evitar que desapareçam na goela do indivíduo mais guloso cá de casa. Aguento quem fala por cima dos outros, quem conversa nas aulas como se estivesse na esplanada da esquina. Calo-me em vez de corrigir um erro de ortografia gritante. São apenas alguns dos exemplos que de repente me assaltam. Às vezes sinto-me tão intolerante.