quinta-feira

Vícios



Passei a viciar o acaso, quando quis fazer coincidir os meus cigarros à minha varanda com as horas de estudo do clarinetista vizinho à sua varanda. Eu à direita, ele à esquerda, no quarto andar do prédio mais velho do quarteirão. Tinta a cair, escadas de madeira que cheiram a mofo e há muito se despiram de verniz, elevadores que nunca funcionaram durante a minha singela existência. Depois das sete, quando já estava mais do que escura a noite, deixava o refogado a queimar durante alguns minutos, vestia um casaco para não enregelar os meus finos ossos, apagava a luz da cozinha e saía de mansinho para a varanda. Ficava de pé e braços meio cruzados, fazia argolas no ar. Fechava os olhos e via-o a ele. O muro que nos protegia da vista um do outro deixava descobrir as aladas notas de música e os dançantes fios de fumo em torno do seu som. Enrolavam-se a melodia e a nuvem, tocavam-se, beijavam-se, davam-se. Respiravam-se. Mas durava o tempo de um cigarro. E durava o tempo das moléculas de cheiro a refogado queimado viajarem até às minhas narinas e se confundirem com o cheiro do tabaco que me torna amarelos os dedos. Voltava a entrar, aquecia uma refeição congelada e comia, deprimida, com o clarinete por banda sonora do jantar mais só.

sábado

Sol quente que teu calor agora se esvai aos poucos, cada dia mais um pouco, e mais outro e outro. Até o teu brilho no meu cabelo se tornar tão frio, tão gelado, que nem pareces mais o mesmo. Avisas quem quiser saber que vais tirar férias em breve, que já trabalhaste muitas horas este ano, que dentro de dias passarás a vez ao astro despido que te substitui nos turnos. A despedida é discreta, aliás, tanto que nem por ela se dá. Elevas apenas a minha face, fechas-me os olhos, dás-me um esgar de sorriso e deixas que, quando te vire costas zangadas, os teus raios se escondam entre as madeixas mais claras. Mas mais e mais frio o teu brilho. Apesar de guardado, à minha mão, se eu quiser. Tão frio.

Rosa de jardim

A água que cai e molha o chão e as plantas em Agosto no jardim da Rosa é a mesma que à Rosa humedece a face e escurece o cabelo, apanhado com alguns ganchos que madeixas e franja deixam cair a esconder os olhos. Dos olhos outras águas nascem, diferentes em composição, semelhantes em sentimento e função. Surgem quando o ardente e caloroso fulgor do que aconteceu se retira para dar lugar a um frio, estático vazio. Servem para expulsar fantasmas, para oficializar o luto, para libertar a frustração em pequenas doses, devagar, até que se esgote. Servem entretanto para lavar angústias, remorsos, mágoas, rancores. É por isso que não basta água pura. Tem de ter sal, e soluços, e falta de ar, e respirar ofegante, gemidos e dor. Para afugentar para longe os negros espectros do que não mais pertence ao tempo que passa. Rosa e suas rosas, de sua cor, amarelas, brancas ou vermelhas, mas encharcadas pelo mau tempo que nem em mês quente deixa de estar presente. Rosa pensa: «Pelo menos não terei que as regar hoje». Pega no regador grande, metálico, a tinta verde descascada a descobrir o laranja enferrujado, e volta para dentro. Há que desvalorizar a chuva em Agosto, há sempre calor suficiente para a secar mais depressa.

domingo

Há grilos na estação do Lumiar

Há grilos na estação do metropolitano no Lumiar e ninguém parece reparar. Ninguém comenta, ninguém faz um olhar desconfiado, ninguém procura o seu esconderijo. Espero que isso não queira dizer que não ouçam e que não pensem como é tão bom entrar de manhã no metro e poder pelo menos sorrir com este curioso chilreio. Antes de me transportar para a rotina, transporta-me para outros lados distantes, reconfortantes. E isso sabe-me tão bem.

sábado

Hoje, sexta-feira, esqueci-me da chave de casa

Hoje, sexta-feira, esqueci-me da chave de casa. E, de volta, enquanto esperava que ela chegasse à minha porta, sentei-me na soleira. As árvores de troncos e ramos entortados em esses serpenteantes desesperados em busca da luz estão carregados de folhas verdes, frescas, translúcidas. Uma abóbada de sombra clara que torna sereno o calor da tarde que em breve termina. Tremem ao sabor da brisa e lembram reflexos brilhantes na superfície de um lago. Deixam cair leves amarelas flores que fazem tapetes no chão e enfeitam os cabelos das meninas que saem da escola. Passam muitos miúdos de mochila às costas, é fim-de-semana, finalmente. Da vedação que limita o pátio saltam luxuriantes folhas de bananeira, roxas buganvílias, heras e farfalhudos arbustos. Chilreiam os pardais de telhado, atravessam a rua em estonteantes voos. Cantam os melros em seus poisos. As andorinhas já escasseiam, é início de Junho. Duas estrangeiras saem do meu prédio. Não as conheço e vão a falar outra língua que nem consigo identificar. Encontro duas moedinhas de um cêntimo no passeio. Finalmente a minha chave chega. E entramos.

Aquilo que não és


Quando usas o vestido comprido e pões no teu cabelo castanho escuro aqueles ganchos com flores de papel brancas e cor-de-rosa, muito recortadinhas que parecem rendas, imagino-te uma fada, com uma aura brilhante e expressão sempre serena. Quase te vejo a segurar uma flauta, a qual delicadamente beijas e da qual retiras uma bela melodia, de olhar fixo no vazio. Quando te mexes e abres a boca e começas como sempre a refilar com tudo à tua volta, esqueço a fada e volto ao que é real. Mas é isso mesmo, e ainda assim, que me faz ficar embasbacado a olhar. Deves estranhar a minha reacção, mas embevece-me a tua energia, o teu ânimo, a tua inconformidade. Ao mesmo tempo afliges-me... Procurarás sempre algo que não pode ser alcançado nunca. No entanto não pareces preocupar-te com isso. Parece ser a única coisa com que não te preocupas. E enquanto estiveres descansada quanto a isso, por mim tudo bem.

segunda-feira

Chá de domingo

A luz branca quente que entrava através dos velhos cortinados da sala produzia sombras compridas e esguias, delineava as cadeiras e os sofás, e as pessoas. As pessoas falavam alto, riam gargalhadas abertas e sonoras, bebiam chá de erva-cidreira acompanhado de bolinhos, biscoitos e bolachas acabados de sair do forno. Uma pessoa fumava, e enchia a casa escadas acima de fumo e cheiro a tabaco, usava o cinzeiro que permanecia limpo todos os dias da semana excepto o domingo. Não me lembro de que falavam. Imagino que fossem assuntos de política tanto como o último rebento de alguém, doenças e saúdes, trabalho e festas de aniversário. As colheres batiam nas chávenas do serviço da Vista Alegre e eu ouvia o retinir a partir do meu quarto. Hoje está tudo guardado, provavelmente a precisar que lhe limpem o pó. O serviço, o chá, os bolos, as pessoas. O tempo perdeu o fulgor que teve outrora. Já não ouço nada do meu quarto a não ser as vozes que saem da caixa da televisão. Enchem o espaço que antes nunca estava vazio. E o chá representa já algo diferente. Menos doce.

sábado

"Águas de Março"

O inverter da ampulheta tem destas coisas. O que para uns "são as águas de Março fechando o Verão", para outros são os dias com mais horas de sol a abrir caminho para fechar o Inverno. A perspectiva dual que sempre impera. A sorte e o azar que o acaso cede ciclicamente num contínuo eterno de lançamentos ao ar de moedas que derrubam a primeira peça de dominó de longas e entrelaçadas filas. O fim e o início, o início e o fim, o entretanto entre os dois, tempos cruzados, trocados, baralhados e sobrepostos. Escritos na linha que estica, estende e dilata, como encolhe e encurta. E às vezes salta. Outras esconde-se e só vemos tracejado, pontos interrompidos por espaços sem preenchimento. E dá voltas e voltas e entra em espirais infinitas. Mas nunca se intercepta a si mesma, jamais volta para trás. A flor que desabrocha e morre sem passar duas vezes a mesma imagem.

Nas águas de Março - Jardim Azul.
Pintura em tela, Sónia Madruga © All rights reserved.


Para lá da fronteira

Quando não há Lua, há um sítio onde o céu fica com muito mais estrelas. Quando ela entrava pelo portão enferrujado e perro que outrora fazia as vezes de barreira para esse mundo fantástico, fundia-se com a escuridão, deitava-se na erva fofa e contemplava a abóbada de astros cravados no breu. Estava frio, de noite, mas as aves nocturnas piavam e os insectos apresentavam monótonas mas brilhantes sinfonias de efeitos hipnóticos. Cheirava a terra molhada e flores silvestres e na língua a humidade do ar denunciava a acidez das formigas em carreiros. As cascas das árvores eram rugosas e quentes e as folhas dos arbustos lisas e frescas. Guardavam o sol ardente das horas de luz e a brisa que passava leve ao anoitecer. Joana abria tanto os olhos e não via nada. Os outros sentidos valiam-lhe por tudo.
Quando trespassa o portão velho e já sem tinta, tem de se baixar para não bater com a cabeça nos ramos do grande castanheiro da entrada. E embrenha-se num bosque de duendes e fadas escondidos em cada canto. Flores exóticas e garridas a ladear o caminho, ao abandono, em luta desvantajosa com silvas carregadas de amoras e outras ervas daninhas. Corre, agora, tropeça nos próprios pés, atrapalhada de ansiedade. Detém-se de repente, respiração acelerada, cabelo revolto, arranhões nas pernas descobertas pela saia curta. No fim do caminho de pedra encontra-o, sempre no mesmo local, na mesma posição. Mente ausente e à espera. Está escuro, não há Lua, mas ela sabe que é ele. Ninguém mais conhece o lugar. Ninguém esperaria por ela assim. E a noite de Verão ganha um outro calor. No silêncio dos dois, ouvem-se os grilos e as cigarras e o vento entre a folhagem. Depois, ficam as estrelas no alto, vigilantes até amanhecer.
Mais ninguém viria a saber destes encontros. Como se nunca tivessem acontecido. No fim das contas, provavelmente não passaram mesmo da esfera do sonho. Como as memórias que de tão longínquas e gastas perdem contornos e nitidez. E chega um dia já não são memórias, são algo que não sabemos dizer o que é, e que nunca poderemos perguntar a ninguém se foram mesmo verdade, se tiveram lugar real alguma vez. É por isso que Joana continua a correr noite adentro entre a densa vegetação abandonada à sorte da rebeldia selvagem. E é assim que volta a encontrá-lo de todas as vezes que ali se encontra. E não importa a quantidade de tempo que se desenrolou entretanto, nem o domínio do caos sobre o antigamente belo jardim. Ele continua a esperá-la nas noites sem luar.

quarta-feira

Chegada à Partida

À partida, recordo a chegada. A luz que sobe recorda-me a luz que desce. E o branco do ar remete-me para o amarelo e laranja, quente e frio a anunciar o fim do dia. Às vezes uma neblina suave flutua por cima do arroz. Que vai de verde a castanho antes de darmos por isso. E não tarda já é Verão outra vez. Porque cada sexta-feira de volta a casa a luz desce mais tarde no dia. E a noite demora mais a chegar.
A paisagem aconchega, oferece sensações de tempos que passaram e tem premonições do conforto do colo de quem nos criou e, de qualquer maneira, há-de criar o resto da vida.
Em pouco tempo, entre o sair da estrada nacional e o passar pelo antigo campo de futebol, o cemitério e o velho depósito da água, vejo sobreiros majestosos, vinha mais recente, o percurso do rio acompanhado de salgueiros-chorões com os seus ramos caídos despidos pelo Inverno. Vejo umas ruínas de casas, coroadas de ninhos de cegonhas, que batem o bico em efusiva conversa e das quais distingo a silhueta recortada pelos últimos raios de sol. A várzea, pintalgada de aves brancas que procuram na terra húmida por larvas e minhocas e insectos, termina onde se erguem os montes verdejantes de erva que gosta da chuva. Há um pequeno lago perto das pontes onde nadam alegremente patos e seus patinhos, de plumagem bonita, preta, verde e castanha.
E este cenário aquece-me e traz-me imagens rápidas e em maioria desfocadas de mulheres de cabelo brancos vestidas de preto, hortas com carreiros de couves, galinhas e ovos nos seus galinheiros, e árvores de fruto. E a terra molhada. A lareira acesa. A cozinha e a comida. As caras familiares. A família. As ruas e os velhos nas suas bicicletas.
À partida, lembro-me sempre da chegada. E guardo esse pensamento para me ir lembrando dele durante a semana, até à chegada seguinte.

segunda-feira

Arte dramática

Fingir para quê, quando o drama é tão real! Como se por oposição àquelas pessoas que fazem birras sem razão, tenha que fingir antes que não se passa nada, quando estou na beirinha do precipício. Fitas? Mas que fitas? Se eu nunca me queixei. O que eu não faço é conformar-me. Não me conformo.

quarta-feira

Lugar de silêncio

No lugar do silêncio, é onde melhor oiço o que me querem dizer. Não há outro lugar onde consiga estar mais atenta ao que me tentam transmitir. No meio das tantas pedras e dos tantos nomes e datas, é onde não consigo fugir para o barulho dos dias cheios, onde esvazio a minha mente, para a encher das memórias e conselhos de quem um dia me ensinou as lições mais preciosas. Lá, não há razão para pensar em nada. Lá, é onde a ausência reina. É onde mais não está quem permanece em tantos outros sítios. É onde a realidade se afigura mais real. E ao mesmo tempo, onde nada além do que sinto importa.
Os lugares mais estranhos, contudo, acabam por ser ainda melhores lugares de silêncio. Mas de um prisma exactamente oposto. Como se para olhar para mim própria precisasse antes de muita, muita gente em volta, muito, muito ruído exterior. Em vez do silêncio da ausência das coisas importantes, onde os gestos e as pessoas que importam dão lugar ao vácuo de mim. Onde olho verdadeiramente para fora de mim. Não, a gente em quantidade e o barulho que ensurdece é que me deixam assim, sem vontade de olhar para fora, uma estúpida necessidade aparente de pensar que tenho de resolver toda uma vida por demais preenchida. Pelo quê?!
Então, é quando ignoro a mulher que quer saber em que direcção seguir para chegar ao Saldanha, e que vive sozinha, viúva há 18 anos e a filha emigrante em Paris, tem problemas de estômago, faz muitas endoscopias e toma injecções nos olhos. É quando ignoro o homem que, educado, me deseja bom dia quando desço para o Metro, e que tem frio, tem fome e não tem uma casa para morar. É quando já pouco me importo com a frequência com que vejo alguém outrora essencial. É quando cavo um buraco cada vez maior em mim, que fica cada vez mais difícil de tapar.

quinta-feira

Ciclos de vida e ciclos da vida


O cogumelo emerge da densa rede de bolor escondida nas folhas castanhas e ramos caídos da árvore. A árvore emerge da semente vinda no bico da ave, caída na terra escura solta e molhada. A ave emerge da casca calcária escondida entre a rede do ninho no cimo de outra árvore. A terra. De onde vem a terra. A terra cheia de vida.
As coisas que existem tocam-se e as suas vidas entrelaçam-se e os laços moldam os caminhos. E tudo acontece em ciclos, os círculos intersectam-se, as linhas saem da geometria e desenham à mão livre o que mais sentirem no instante.
O feto cresce criança, a criança cresce menino e menina. Menino e menina ficam maduros e como homem e mulher se amam, dão frutos que os vêem senescer até voltarem à terra.
Levantamo-nos devagar, vamos abrindo os braços ao céu, subimos quanto conseguimos. Quando em bicos dos pés, corpo elevado e mãos e rosto a tocar o ar que nos envolve. Daí fechamos os olhos, fechamos o sorriso, baixamos a cabeça. Recolhemos os membros e enrolamo-nos sobre nós próprios. E choramos. E somos confortados. E de novo nos preparamos para mais um estado de graça. Chega sem aviso, parte sem avisar. Uma e outra vez.
A imprevisibilidade é o abismo. Quanto tempo até cair, não sei. A folha que espera a queda no Outono. Terá tido alegria suficiente todo o Verão.