quinta-feira

Geadas


Saiu pouco mais cedo que o seu hábito, mas o suficiente para se enregelar assim que fechou a porta do prédio. Porque tudo está branco, que não é neve, mas gelo! Os carros, a relva, as folhas das árvores, as folhas dos arbustos e as flores nos canteiros dos prédios da rua, os caixotes do lixo e os bancos do jardim. O telhadinho das arrecadações. Diria até que as próprias penas dos pombos que dormem numa tentativa de abrigo, abaixo do algeroz do telhado. Tudo coberto pela fina manta gelada.
E assim frios se tornam os dias. Sozinhos, um a seguir ao outro, mas sem alento. Como que não suficientes para encher o tempo. Desligados, alheios uns dos outros. Porque se encolhem tanto quanto o frio os aperta em si mesmos. Cada vez mais estáticos, no pequeno tremelique que lhes faz ranger e bater os dentes madrugada fora.
Vamos, vem aquecer-me os pés. Que sem pés quentes não consigo adormecer. E sem dormir assisto a este desligamento dos dias. E assim se me desliga a mente. Vagueio entre um e outro dia, naquele segmento dúbio do tempo que está entre os tempos de verdade. Quando nada acontece e tudo se vê acontecer. Sem saber se de facto é real. Porque nos interstícios do tempo é quando a realidade às tantas é mais livre de se manifestar. É quando, perdidos no tempo que não é tempo, entre o que é tempo a sério, a tolerância se alia à ausência de restringência. É quando os olhos mais se abrem para deixar entrar mais luz, até do mais pequeno pormenor.

sábado

Assador de castanhas


Sai em passo apressado, já é noite e as luzes dos carros ofuscam a vista de quem vem em sentido contrário no passeio. Há buzinas a soar e pessoas a falar com outras pessoas ao telemóvel. À saída do portão, a névoa que sobe, desce e cresce em redor do carrinho das castanhas perfuma o ar de com o cheiro doce, quente que a conforta. Filtra a luz dos faróis na estrada, cria uma atmosfera mística, altera o real. O frio é assim mais suportável, com a pressa nos pés e as castanhas no nariz. E os músculos hirtos, a apertar o casaco e a esconder o pescoço, cabeça baixa entre a fina écharpe. O sobretudo preto a descobrir as pregas da saia vermelha. O toc toc dos saltos na calçada. A respiração condensada em frente aos lábios entreabertos, carnudos, vermelhos a esconder o roxo gelado. Corre e respira fundo para a serenidade e calor dentro do autocarro. Fecha os olhos e pensa que está a voltar para casa. É fim-de-semana. E por dois dias a cabeça pode lavar-se da rotina e ser só criança outra vez. Olhar para o que é pequeno outra vez. E reparar de novo que é isso o que de mais grandioso se tem, ainda que, noutras circunstâncias, seja dia de semana e não se tenha talento para assim realmente acreditar. O fumo do assador de castanhas tem estado lá todos os fins de tarde. Até todas as manhãs. Quem sabe o vendedor de castanhas não foi encomendado por uma entidade divina, com funções de lembrar às pessoas que todos os dias são dias. Todos os dias são vida. E vida é fechar os olhos e pensar que estamos em casa. Onde é suposto estarmos. De onde não queremos fugir. É o cheiro do fumo das castanhas em permanência, e a fugidia lembrança das bonecas de cabelo de lã, olhos de pionés e cabeça de castanha. Esta Maria Castanha sai agora apressada à sexta-feira. Mas numa pressa diferente. A pressa de quem se sente já em casa. Desde que seja Outono. E o fim de tarde já seja noite. E as luzes dos carros ofusquem quem vem de frente no passeio. E os sapatos façam toc toc na calçada. E não queira fugir.

domingo

Mudança de energia


A noite passada o vento acordou-me. A mim e às copas das árvores no jardim lá fora. Abri a janela para confirmar a ventania e encontrei ramos e folhas em remoinhos presos ao chão, dançavam sincronizados a partir dos seus troncos, desenhavam círculos no espaço da sua existência. Pareciam revoltados. Numa dança tão violenta e sonora, só não conseguia perceber o que diziam. Fiquei alguns minutos em esforço, mas nada. A mensagem ficou perdida no ar.
Pensei em cabelos fora dos penteados, vestidos esvoaçantes, velhos a segurar as boinas para que não fujam, castanhas folhas a fugir de montes ao longo do passeio. Panos a saltar das molas nos estendais, sacos de plásticos a elevar-se no ar. Pensei que todos me lembravam esforço. O esforço de contenção, contrariado pela força do ar que corre no vento. Ninguém se quer perder no meio da tempestade. Ninguém se quer ver desaparecer. Toda a gente se segura em si, com determinação. Conscientes do seu objectivo.
Lavei a cara com a frescura que anuncia o fim do tempo quente. Fechei a janela para que o conforto do quarto me voltasse a abraçar. Voltei a deitar-me e desta vez puxei para mim o edredão entretanto abandonado aos pés da cama. Dormi. É vento lá fora. E chuva e frio e corpos rijos com medo de perder a energia. É tempo de ir buscar energia a outro lado.

quarta-feira

Pequenice


Quando és pequeno, há um número infinito de países neste mundo, que é impossível saber o nome deles todos. Há tantas pessoas à face do globo que tens a certeza de pelo menos uma estar a fazer exactamente o mesmo que tu em cada momento. Os rabiscos nas folhas dos teus cadernos são para ti os mais eloquentes ensaios. E todas as superfícies são boas para gravares o teu nome, ainda que uma ou mais letras fiquem escritas do avesso. Sabes que a casa de uns dos teus avós é suficientemente longe para as visitas terem de durar pelo menos um dia inteiro e para o Natal ser passado lá todos os anos. Não tens noção de quanto mede um mês, nem sequer uma tarde. Voltas para casa quando escurece, ou quando alguém berra o teu segundo nome a seguir ao primeiro. A tua casa é a rua inteira e ainda a paralela para a qual tens acesso pelo terreno em obras intermináveis. Quando és pequeno, sabes que a certa altura a tua mãe vai aparecer no quintal com um tabuleiro cheio de sandes de manteiga e fiambre, um jarro de limonada e gelo acompanhado de meia dúzia de copos desirmanados e uma taça de cubos de melancia fresca. A única coisa que conheces acerca de gasolina é o cheiro do carro do teu pai. Medes as estações do ano pela orientação e tamanho da sombra do telhado no chão. E até achas que o Verão dura mais do que todo o tempo escolar. Queres adoptar todos os gatos que encontras na rua. Andas descalço todo o dia. Gritas, ris, sobes às árvores, esfolas os joelhos, choras, fazes birras. Lambuzas-te com as torradas grossas com azeite e açúcar e as bolachas maria barradas com manteiga que a avó te prepara. Reconheces o som das canadianas do teu avô e segue-lo para a horta à hora da rega. Quando és pequeno, estas e outras experiências parecem não ter lugar no tempo. Parecem eternas. E não o são?

segunda-feira

Estranhas cigarras



Estranhas cigarras que me enchem os ouvidos, debruçada no parapeito da janela do terceiro andar, virada para o poente, entre a luz do pôr do sol e do sol posto. Cantem, cantem, anoitecer fora, enquanto fecho os olhos e estico o pescoço para provar a brisa fresca mas ainda afável, depois do abafar de um dia de 40º. Não parem, estranhas cigarras, que o vosso canto me traz no ar o sol escaldante na Arrábida, e a sombra amiga das barraquinhas de tecido às riscas brancas e azuis, brancas e vermelhas, brancas e amarelas, alinhadas no areal. Onde nos refugiávamos a comer cornettos de morango, a lambusar as bochechas, a rir às gargalhadas. Continuem, estranhas cigarras. Porque me sabem a Verão.

sexta-feira

Líquidas formas

Formas líquidas elongam-se, enrolam-se vagarosamente, flutuantes no ar. Indefinidas, arestas contínuas, rolantes. Entram e saem de recipientes de fronteiras igualmente flutuantes. Parecem bolhas cheias de fumo, moldadas pela atmosfera que as envolve, em diferenças de pressão entre fases que as torna igualmente corpóreas, reais. Preenchem toda a sala, lutam preguiçosamente pelo espaço. Calmamente formam extensões, protuberantes em várias direcções. Como num candeeiro de lava, são luminosas e coloridas. Têm um halo comum de brilho desfocado. Põem-me tonta, se as contemplo de costas no chão, expressão esgazeada. Hipnotizam-te e abrem-te a boca, em estático espanto. Anestesiam-te enfim, imóvel, inconsciente. Livre.


sábado

Da varanda, o Equador

O laguinho no quintal abunda em vida verde, castanha, lodosa, gelatinosa. Alberga pequenas e grandes rãs que ao anoitecer coacham cantos que embalam o meigo balançar dos longos, esguios ramos do chorão a roçar viçosas ervas no chão. Sentada na espreguiçadeira de madeira esburacada pelo bicho e de branco pano manchado pelo amarelo do tempo, contemplo o espectáculo, ambientado pela brisa do fim de dia. Contagia-me a calma do céu primaveril. Perturbada nem pelas andorinhas em pique, nem pelo restolhar das folhas das árvores ao levantar do vento, suave. Cai um limão da sua árvore. Passa uma lagartixa cheia de pressa. Lá dentro, vozes de quem conta histórias de tempos antigos, não tão distantes assim. Caminhos de roça em roça, cor das peles, café, cacau e banana. O peixe e a água quente a banhar o areal. E o verde, sempre verde do mato e de todas as coisas. As geringonças que os miúdos arranjavam como brinquedos. Os jogos à bola. As viagens diárias para a escola, em jipes metálicos que saltavam todo o caminho. Tudo diluído por fim em medo e destruição. Uma quase fuga, oportuna. E saudades. Alguma vontade de voltar. Mas para ver o que já não existe. O que foi entretanto tão maltratado. O que já está só na memória de quem lá esteve. "Quando o último branco se for embora, São Tomé acaba", alguém disse.

Ventos

Não tenho saudades do vento do norte. Nunca tenho. Gosto que ele não venha. Que venham outros em sua vez. Porque quanto mais ele sopre, mais eu hei-de apertar a minha capa. Mais e mais até de tão apertada estar eu deixar de sentir que sinto seja o que for incluindo o frio que me enregela os ossos e a alma. Venha o sol, e o seu poder de persuasão. E a minha capa cairá no chão sem esforço. Sem força para me agarrar. Cairei com ela, inanimada, mas agora feliz. Deleitada. Ventos de gelo são coisa a não lembrar, quando se quer os raios estrelados a penetrar os poros do corpo e a preencher o ser de bendita, gloriosa energia. Venham as ventosidades quentes revolver-me o cabelo, encher-me os pulmões de vida, abrir-me as asas e as das andorinhas. Adeus, vento norte! Mantém-te longe!

Limites


Uma pessoa deve conhecer de perto e em pormenor os seus limites. Sim, devem ser desafiados... Mas, para bem da sanidade mental do próprio e dos que o rodeiam, há que ter muita cautela com estes desafios. Quando o ponto forte do teu dia começar a estar relacionado com episódios tais como o momento da saída do local de trabalho ainda de dia, e mesmo não estando um sol radiante, por acaso calha a estar uma fresca neblina que te traz o cheiro do mar de outras bandas, então terás algumas respostas acerca daquilo que valorizas. Se te parecer que és o único a reparar nos insectos e afins que encontras enquanto passas pelo jardim no caminho para casa. Se chegares à conclusão que te interessam mais os meios que os fins. E a manta no sofá e o silêncio no ar. Porque é que te sentes culpado?! Devias respirar fundo, expirar lentamente de olhos fechados e sentir o maior alívio. Não são estas as coisas que nos estão sempre a dizer que toda a gente procura?! Que o tempo é escasso, a vida é um dom, tudo corre e nada fica e que se quer é saúde e quem se ama por perto, bla bla bla "pardais ao ninho", como costuma dizer o meu pai. Andamos todos enganados. E no fim das contas, como no fim do dia, está tudo escravo da frustração. Ainda que se seja muito bom em teatradas e se finja ao espelho que não. Serão raras as vezes dos momentos de concretização plena. É pena. Parece tão fácil quando aprendemos a lição.

terça-feira

Charco

Preferia fugir e ficar até anoitecer deitado na relva. A ter de encarar o fracasso escrito em todas as caras (ou, em maior verdade, em todos os espelhos a olhar fixamente para mim). O ar era quente e saturado, o céu alaranjava conforme a luz caía em raios cujos ângulos pintavam o azul de uma cor diferente. As rãs no charco eram a banda sonora perfeita para o mais barulhento cérebro. O charco quieto o melhor cenário para o mais entorpecido corpo. As linhas rectas desenhadas pelos aviões muitos quilómetros acima do chão contrastavam com as curvas enroladas das tentativas de raciocínio e gozavam com a falta de certeza que dali emanava. Se parte queria levantar-se, erguer-se para tomar uma atitude e decididamente saber para sempre como resolver tudo o que surgisse, a parte maior que essa deixava-se inadvertidamente estar, horizontalmente descontraída, a contrair a outra tanto que não lhe deu espaço nunca para crescer. Guerra desleal. Tomada inconscientemente e de forma tão inevitável.  Se ao menos pudesse querer calar aquelas rãs... Elas talvez deixassem o pensamento ser mais claro, menos difícil. Mais concreto. E determinado. E capaz. Talvez me sentisse melhor.

Há elfos na cozinha

Há elfos na cozinha, gostam de espalhar açúcar e farinha pela mesa e pelo chão. Trabalham à luz das velas, acesas e espalhadas pelas bancadas de mármore. Fazem bolos e bolachas, às vezes tartes e pudins. Enchem aquela divisão com muitas estrelas pequeninas e brilhantes, purpurina no ar. Quando tudo é dourado e prateado e verde e vermelho, os sacos das compras vêm cheios de ovos e tangerinas, bacalhau e couves. E mal saímos à rua, de tão quente é a sala da lareira. De tanta geada que nos dá os bons-dias lá fora mal o sol se levanta. É Natal. E tudo brilha que nem o doce glacé do bolo em forma de tronco que adorna a mesa. Fazendo de conta que por estas paragens também neva, o teatro é sempre bem-vindo por esta altura. É Natal. E apesar do gelo nas bochechas de quem bate e entra à porta, nunca se sentirá mais calor em todo o Inverno do que no tempo de Natal.

Young blood

Enchemos mochilas com garrafas de cerveja e debaixo do lençol preto do céu estrelado de Agosto subimos para cima das bicicletas. Pedalámos uns atrás dos outros, aos gritos pela noite. Entrámos por terrenos alheios, fomos por dentro de ervas e arbustos. Saltámos muros e cercas de arame farpado, com as bicicletas às costas e as lanternas a apontar o caminho. Sujámos calças e calções, arranhámos as canelas. Pisámos as tábuas do velho e tosco cais de madeira, despimo-nos e mandámo-nos para dentro de água. Aquela sopa mista de lama e ferrugem e óleo dos motores dos barcos. Atirámos água uns aos outros, ecoámos gargalhadas, não havia amanhã. Subimos agarrados a cordas cheias de algas e deitámo-nos a contemplar a abóbada do melhor Verão das nossas vidas. A contar estrelas que caíam, direitinhas aos nossos bolsos, cheias de desejos. A água já não se mexia, o silêncio do açude somente perturbado por corujas e mochos que piavam uma ou outra vez. No ar, a essência de cada um tocava a do outro, saturando a atmosfera com algo que não saberemos enunciar ao certo. Fizemos coro para músicas lamechas que nunca teríamos tido coragem de cantar noutro contexto. Fugimos a sete pés e muitas rodas, pregámos sustos e morremos de medo no breu da floresta, aos tropeções nas raízes elevadas da terra. Explodimos de alegria quando chegámos à estrada iluminada pelos candeeiros de rua. Fizemos parte uns dos outros. E isso permanece.