quinta-feira

Geadas


Saiu pouco mais cedo que o seu hábito, mas o suficiente para se enregelar assim que fechou a porta do prédio. Porque tudo está branco, que não é neve, mas gelo! Os carros, a relva, as folhas das árvores, as folhas dos arbustos e as flores nos canteiros dos prédios da rua, os caixotes do lixo e os bancos do jardim. O telhadinho das arrecadações. Diria até que as próprias penas dos pombos que dormem numa tentativa de abrigo, abaixo do algeroz do telhado. Tudo coberto pela fina manta gelada.
E assim frios se tornam os dias. Sozinhos, um a seguir ao outro, mas sem alento. Como que não suficientes para encher o tempo. Desligados, alheios uns dos outros. Porque se encolhem tanto quanto o frio os aperta em si mesmos. Cada vez mais estáticos, no pequeno tremelique que lhes faz ranger e bater os dentes madrugada fora.
Vamos, vem aquecer-me os pés. Que sem pés quentes não consigo adormecer. E sem dormir assisto a este desligamento dos dias. E assim se me desliga a mente. Vagueio entre um e outro dia, naquele segmento dúbio do tempo que está entre os tempos de verdade. Quando nada acontece e tudo se vê acontecer. Sem saber se de facto é real. Porque nos interstícios do tempo é quando a realidade às tantas é mais livre de se manifestar. É quando, perdidos no tempo que não é tempo, entre o que é tempo a sério, a tolerância se alia à ausência de restringência. É quando os olhos mais se abrem para deixar entrar mais luz, até do mais pequeno pormenor.